sábado, 7 de dezembro de 2013

Ditadura universitária - pra não dizer que não falei das leis



Terra do Nunca. Nunca pode nada. Imaginemos – mera utopia – que a sociedade, como problemática sistêmica inspiração basilar de toda norma jurídica, se afoga em uma crise de valores. E o aspecto fulcral ultrapassa a sociologia herdeira de Durkheim: vaga perdidamente na lábia da moça na fila do banco, do senhor que é assaltado, das vítimas cotidianas almejando segurança repressora que não são capazes de se contentar com as contemporâneas disposições legais do Código Penal, este, nada ímpio. O certo, entretanto, é que não estamos aqui para discutir as fontes da violência em demasia e de todos os problemas sociais, mas, a partir de quando podemos resumi-los em crise de valores – aqui suplico ao leitor que jamais se esqueça do termo empregado -, se a norma jurídica com vigência e eficácia resguarda potência imperativa para regular uma sociedade, talvez seja necessário, agora, olhar para o feto, e não para a barriga. Nesta senda é que se indaga: quais são as leis? Quem elabora as leis? E qual a origem de tudo? Se Galileu Galilei não foi capaz de responder a questão, eis o desafio: a esperança nasce e morre nas cadeiras universitárias. E isto, aqui, será provado por um raciocínio lógico, que nos é o bastante, para não dizer que não falei das leis.

Imaginemos que o mundo é uma terra sem lei. Para a formação de juristas, é construída uma faculdade, cuja posição geográfica desde logo se questiona, uma vez que concerne a um espaço físico e cultural onde não regem as nossas leis – nem as sombras da moral e dos bons costumes, lembremos sempre da crise de valores. Na faculdade temos uma figura lendária fundadora, última instância mais conhecida como o ouro no fim do arco-íris: muito se fala, ninguém pode chegar. Chamaremos tal instância de reitoria. Na faculdade, as indicações bibliográficas para acompanhar as matérias que integram o conteúdo programático semestral coincidentemente são sempre de autoria de membros do próprio corpo docente. Na faculdade, dá-se pontos a mais para quem fizer um trabalho sobre o livro lançado por um professor, lembrando que não é obrigatório fazê-lo – mas soma nota. Na faculdade, como é do conhecimento de todos, sabemos que o Direito está longe de ser uma ciência exata, daí advém a doutrina, interpretação da lei à luz do raciocínio de juristas. A doutrina sobre um dado tema pode dividi-lo entre duas concepções ou até mais, mas aqui, na terra sem lei, a faculdade é a lei, o professor é a doutrina. Na faculdade, o aluno que indaga o professor assina o atestado de óbito, massacrado pelo poder da caneta. A caneta é uma varinha mágica do juízo final que decide e guarda com notável imponência a porta do paraíso. Vida eterna aos estudantes de caderno, vida curta aos leitores de livro. O poder da caneta é o filtro da terra sem lei que vem doutrinando os alunos a sobreviver em uma ditadura universitária. E Darwin previa isso quando apontou que se perpetua a espécie que mais se adapta. A ciência, então, se mostra favorável à perpetuação do mal, o mal que a sociedade da crise de valores não enfrenta por pura preguiça. Se almejarmos uma vingança contra o governo, nossos olhos como leitores assíduos serão o primeiro passo. Na terra sem lei não é diferente. Mas a ditadura universitária legislou para isso: a terra sem lei não tem mesmo leis, mas regimento interno. Ante a maestria do poder da caneta, tal regimento prevê que não haverá vista de prova. O aluno, na condição de consumidor, que paga pela prestação de serviços, autor do conteúdo intelectual da própria prova, não tem direito algum de revisá-la e de ter a justificativa da sua nota. Digamos – outra utopia – que o fato dê margem para arbitrariedades. O aluno, para vestir toga, antes veste nariz de palhaço. (...) Mas sempre haverá um revolucionário que levantou da cadeira, como bom estudante de Direito, irá recorrer ao judiciário. E não pensemos que aqui estou para dizer que este aluno estará em desvantagem, a culpa é de Mauro Capelletti, em “Acesso à Justiça”. Imaginemos, pois, se o presidente do Tribunal de Justiça integrasse o corpo docente da faculdade. Não sou eu – esquivo-me para não ser torturada -, é a norma processual civil que impede o julgamento ante a suspeição do juízo, posto que a justiça preza pela imparcialidade. Não nos parece injusto, ou estaríamos a julgar o caráter de outrem não munidos ou legitimados a fazê-lo – e nem é da minha natureza, mais de monge do que de escorpião (vide fábula do monge e do escorpião), mas, pelo bem da verdade, parece irônico. A terra sem lei deixou a desejar. O que não se sabe, ainda, é se culpamos a arbitrariedade, o poder da caneta como fonte da formação de juristas, ou a plebe universitária massacrada pelo reinado do fim do arco-íris, merecedora de todo mal, culpada e punida pela inércia. Tudo por culpa de Einstein, para quem o que preocupa não é o barulho dos maus, mas o silêncio dos bons. Minha culpa, não. Pretendo estar longe, ou meu rumo será o exílio. Culpa sua, leitor. E da ditadura universitária.
 
Mas para não dizer que não falei das leis, foi em 1764 que Beccaria demonstrou, em “Dos delitos e das penas”, o quão atroz e insuficiente era a crueldade. E o direito, como ciência, é natural excludente de cidadania. Quiçá poucos alunos – futuros exilados, lembremos sempre de uma crise de valores -, saberão do que estou falando, pelo acesso ao conhecimento, e outros, pelo acesso à informação. No final, tudo resulta no mesmo: nem um nem outro levantará da cadeira. Mas a nós incumbe este papel, para que não sejamos mais culpados pela moça da fila do banco e pelo senhor com medo de ser assaltado, para quem a lei é fraca, o advogado corrupto, o direito cruel. Reza a lenda que os universitários que ousaram enfrentar o sistema, foram as últimas vítimas da inquisição. E o fracasso do sistema inquisitivo impera na doutrina dos penalistas clássicos, tal que o sistema processual penal só não caminha mais velozmente rumo a falência porque é diferente da terra sem lei: a faculdade é juiz, autor e réu. Testemunha também, o que preciso for. E tal como ocorre no processo criminal, o aluno é a vítima. E o destino é o cárcere, o meu cárcere e o cárcere alheio. Seremos encarcerados a limitar o raciocínio, mas ainda não encarcerados a atenuar o pensamento. Vivemos mesmo em uma crise de valores, mas o que falarmos de valores se nos tornamos adaptáveis? Darwinistas de plantão, de seleção em seleção natural surgiu o primeiro ideal nazista. E para sofrer as sequelas do campo de concentração não bastava levantar da cadeira, mas existir. Na faculdade, Descartes diria: “Penso, logo resisto”.
 
O que faço é mera reflexão, mas se eu sumir amanhã, não culpemos o destino. Capitalistas escravizados dizem que eu serei só mais um herói morto. O que não mais sei é se viver na crise de valores é mesmo preferível ou suportável, ainda que me torne um desafio diário, vítima do sistema inquisitivo, da crítica de Beccaria e dos campos de concentração. Enquanto isso “Mãos ao alto!” – gritou um homem, um demônio engravatado. Ele estava armado com o poder da caneta. E eu, reincidente, condenada. Sorte a minha o Brasil não admitir prisão perpétua – por vezes me esqueço que aqui é terra sem lei.
 
Isso tudo é só uma faculdade. Temos um mundo afora sem sombras malignas, liberdade do Mito da Caverna, de Platão. E a escolha é livre: lutar ou morrer. Adaptar-se é só mais uma marcha lenta da morte. Da morte moral, porque vivemos em uma crise de valores.
 
E resumo o pensar na canção de Chico Buarque, prevendo o meu exílio, anarquista estudantil nata. Ah, terra sem lei: “apesar de você, amanhã há de ser outro dia...”
 
OBS:
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
(composição de Chico Buarque, canção Apesar de Você)