quinta-feira, 5 de junho de 2014

Em defesa da Lei da Palmada, contra o conservadorismo e as sangrentas políticas do "cidadão de bem"

Foi aprovado pelo Senado o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 58/2014, conhecido como Lei da Palmada, com o objetivo de punir agressões contra crianças e adolescentes. No aguardo da sanção presidencial, tempestivas são as colocações: a priori, o projeto altera a Lei nº. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), conferindo a estes o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou outros tratamentos que sejam considerados cruéis ou degradantes e, por castigo corporal, entende-se a ação disciplinadora ou punitiva que, por meio de força física, provoque dor ou lesão à criança ou adolescente; por tratamento cruel ou degradante, entende-se a conduta gravemente ameaçadora, ridicularizadora ou humilhante. Os pais ou responsáveis que utilizarem tais meios estarão sujeitos às medidas previstas no artigo 129 do Estatuto, dentre as quais se pode destacar o tratamento psicológico ou psiquiátrico, a advertência, a perda da guarda etc.

Sob o alicerce da massa conservadora - o que confiamos ser o estado de mais alta periculosidade trajando os preceitos de "boa cidadania"-, o projeto é abusivo e poderá repelir grave e injustamente os pais que gozam de autonomia para educarem seus filhos. A crítica é necessária: severamente, o Código Penal trata a ofensão à integridade física como crime de lesão corporal, previsto no artigo 129, e especificamente contra descendente no parágrafo 9º. Ocorre, contudo, que a cultura pode prevalecer sobre a lei, no sentido de se ter uma moral relativizada - não era crime, em termos fáticos, ou não era comumente levado ao judiciário um caso de um pai que utilizasse de força física para castigar seu filho, provocando dor ou terror psicológico para traumatizá-lo e, dessa forma, coibir um eventual ato de indisciplina. Era comum. Tão comum que foi possível observar, certa vez, uma vendedora ambulante que fez uso de uma colher quente para queimar a mão de sua filha, que não obedecia suas ordens; tão comum que o cenário midiático foi tomado pela atrocidade de pais que assassinam os filhos, no ápice de uma conduta primitiva, cruel e avassaladora que pode não ser mais do que um estágio avançado de sadismo crônico de quem pune física ou psicologicamente aquele cuja proporção não atinge suficiência para defender-se. E, sobre a autonomia na educação dos filhos, a Constituição Federal, em seu artigo 226, trata a família como base da sociedade e merecedora da proteção - e portanto intervenção - estatal, sendo assegurada a assistência para coibir a violência doméstica (§8º), prescindindo informar, ainda, os deveres de preservação das garantias fundamentais da criança e do adolescente previstos no artigo 5º da Constituição, no artigo 227 e no mencionado Estatuto. 

Nesta senda, o que se busca punir com o projeto de lei é a libertinagem educadora; não a autonomia, mas os resquícios de violência que estão distantes de serem métodos eficazes capazes de proporcionar a um indivíduo a compreensão do caráter de seus atos. 

Não é crível, ainda, pensar que se uma criança necessita de força física ou agressão moral grave para que seus atos sejam coibidos, esta criança pode sofrer de ausência de discernimento, o que pode ser, ainda, originário de uma predisposição ou de influência de fatores exógenos, mas que, de qualquer forma, prova a prescindibilidade das "palmadas" e seus indícios de crueldade e covardia. Fosse a imposição do terror e do caos a genialidade das soluções para o crime e Beccaria teria se calado; e não haveria reincidência, e o sistema carcerário seria o modelo ideal de recuperação e ressocialização do indivíduo. Mas nunca foi. E não será. 

A violência que pune a violência não é uma tática educativa, mas vingativa. O caráter retributivo de um ato é a receita mais lógica para ampliar os seus efeitos negativos. É certo que, contudo, a razoabilidade deve ser respeitada, mas não parece possível - e portanto não é nada temeroso - que seja punido severamente um responsável que não ultrapasse os seus métodos educacionais a ponto de ferir ou agredir seus filhos, ou que, para exemplificar, uma mãe perca a guarda por ter puxado a orelha da filha, muito embora o texto do projeto de lei seja claro ao proibir atos que causem dor à criança ou ao adolescente, mas nenhuma lei pode ser interpretada de maneira tão estrita que o tempo e o espaço não sejam a causa de sua relatividade, a tal ponto que preceitos éticos e morais determinam a diferença entre pais educadores e pais agressores, entre os preocupados e os sádicos, entre os virtuosos e os descontrolados, entre, futuramente, os criminosos e as vítimas.

Ainda assim, não parece ser a compreensão da intenção do projeto o ponto mais crítico do dilema. Em tempos de ameaça ditatorial, a recente volta da "Marcha pela família com Deus e pela 'liberdade'" escancarou a política do "cidadão de bem", que defende a instituição da família de maneira rígida e clara conforme mandamentos religiosos, e do mesmo dogma emana ainda o respeito aos pais, o que não pode ser confundido com anuência de libertinagem. É o cidadão de bem que defende a família, embora seja machista e exerça bravamente o seu patriarcado, mas entende ser um absurdo que a lei reconheça como união familiar dois companheiros do mesmo sexo. É o cidadão de bem que julga as leis penais tão brandas e favorece a ação dos justiceiros. É o cidadão de bem que se sente, agora, punido e limitado em agir, porque as crianças precisam de algumas "palmadas". E, para o cidadão de bem, as crianças precisam tanto de "palmadas" quanto os acusados de postes para serem amarrados e espancados em público, ou de um sistema carcerário desumano e impiedoso para trazer ao infrator o maior de todos os sofrimentos e puni-lo por uma vida inteira julgada por um dado momento. E todo o descontrole sádico e o desenfreado anseio de vingança traduzidos como senso de justiça aflorados surgem disfarçados no exercício da boa cidadania, na pregação de um ensino religioso verdadeiramente católico em um Estado laico, e no clamor público sangrento após o informe midiático que considera o crime como um fenômeno do criminoso - este, à margem da sociedade, como se não dela fosse, e como se não merecesse também a atenção social. 

Pelo bem das normas penais brasileiras e dos direitos humanos, que não são uma conspiração de defesa adotada por vilões juristas do cenário crítico que protagoniza o Direito, é dever reconhecer que enfrentamos o período batizado de Lei e Ordem pela política criminal. E de valoração dogmática com base em crenças irracionais, separação de indivíduos bons e maus em totalidade, convencimento de superioridade própria e marginalização alheia, a Alemanha tem uma imensa história para contar. Que estejamos, ainda, vivos, e por certo preparados, posto que vivemos em um período em que criamos o frio para distribuir agasalhos. Em suma: livrai-nos dos cidadãos de bem, amém.

*OBS: é possível acessar o projeto de lei no link http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=790543&filename=PL+7672/2010