sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O advogado como instrumento necessário de justiça no âmbito da empresa - perspectiva, foco, controle e prudência

Preceito da Constituição Federal, é o advogado instrumento necessário de justiça, indispensável à sua administração (artigo 133). Mas a restrição da imagem do profissional à atuação contenciosa rima com morosidade - reduz a motivação do jovem advogado em detrimento da eficácia da prestação jurisdicional. A diversidade dos recursos cíveis de um lado representa arduamente o princípio constitucional do duplo grau de jurisdição, de outro, a redução na prática a uma mesa de processos em incessante fila de espera. E não necessariamente a espera prejudica a todos. Em uma condenação por dano moral contra empresa, a habitualidade de recursos manifestamente protelatórios traz um ganho de tempo estrategicamente calculado que, ante os anos de lucro crescente, acaba por não ser sentida financeiramente - intenção real de um pleito em danos morais, eis que a coerção financeira parece ser o mais temeroso castigo no viés de um sistema capitalista. Quem perde, então, é a justiça.

Ausência de verba cedida ao Judiciário, gestão forense deficiente e litigância de má-fé são três fatores que culminam no abatimento da justiça, e a chave para o atalho pode estar em duas palavras: distinguir corretamente eficácia de eficiência. Diz-se que uma gestão eficaz é aquela limitada a atingir resultados, enquanto a eficiência se traduz em uma presteza da organização para tentar alcançá-lo. Se houver eficácia sem eficiência, a tendência é ampliar a antipatia entre colegas de profissão, tal como ocorre na relação entre advogados e funcionários forenses, com constantes reclamações e desentendimentos testemunhados no balcão de atendimento. De outra parte, uma gestão eficiente, porém não eficaz, consola aquele que necessita de um serviço com uma flor repleta de espinhos - vai em busca de um auxílio e volta para a casa comovido pelo máximo esforço do profissional que, apesar de toda a gentileza, não conseguiu atendê-lo. E o que a eficácia e a eficiência tem a ver com o advogado? O que se sabe, em suma, é que este assume obrigação de meio, não de resultado. Mas, como já dito, a atuação contenciosa não é o foco. Perspectiva, controle e prudência são valores agregados às organizações que adotam o departamento jurídico em sua esfera preventiva. E as grandes empresas conhecem amplamente os conceitos de eficácia e eficiência, cientes de seu grau de importância.

No ano de 2013 foi divulgado que desde 2005, ou seja, do surgimento da nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei N. 11.101/2005), somente 1% das empresas que pediram recuperação judicial conseguiu efetivamente se recolocar no mercado - 4.000 companhias pediram recuperação, e somente 45 voltaram a exercer atividade de empresa, segundo o Estadão, que divulgou os dados da consultoria Corporate Consulting e do escritório de advocacia Moraes Salles. E mais: somente 23% obtiveram aprovação no plano de recuperação, 398 faliram e o restante segue em marcha lenta para o fim, refém da morosidade da justiça - ou melhor dizendo, do judiciário, que nem sempre é justo. Comparado com os EUA, onde 30% das empresas atingem a recuperação, em território nacional não conquistamos nem eficiência, nem eficácia, já que 1% é um dado extremamente preocupante, a falência de uma empresa repercute negativamente no cenário econômico, na queda de empregos, de circulação de bens e serviços e da carga tributária necessária ao fisco, sem contar com os processos que seguem sendo arrastados prolongando o estado vegetativo de uma empresa. A saúde financeira de uma atividade econômica organizada é um fato de repercussão social, e que segue, no Brasil, dando os últimos suspiros. É nesse cenário que se encontra a advocacia consultiva como porta de um atalho para um recomeço. Isto porque, em primeiro lugar, as empresas tendem a limitar-se ao conhecimento de fluxo de caixa visando uma renegociação de dívidas, quando, na verdade, o ativo não deve jamais restringir-se a isso - e para conciliar a gestão do negócio com o conhecimento da lei em Direito Recuperacional e Falimentar de Empresas, nada melhor do que a figura de um advogado operando em grandes consultorias na condição de administrador judicial.

Mas a atuação consultiva não se limita ao âmbito empresarial. Com notória relevância, o fortalecimento do compliance representa um fator impulsionador da ascensão econômica equilibrada. Segundo estudos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo,  crimes de corrupção são danosos à economia brasileira em uma medida anual que varia de R$ 51,4 bilhões a R$ 84,5 bilhões, isto é, ocorre um desvio do Produto Interno Bruto entre 1,38% e 2,3%, equivalente a 7,2% do valor que o país investe em máquinas, equipamentos, construção civil e infraestrutura e 26% do que gasta em educação, por exemplo, Como a chuva enfrenta a seca e traz a tempestade, a empresa cresce e torna-se proporcionalmente vulnerável aos riscos - porém, a vulnerabilidade é característica alheia ao conceito de empreendedorismo, podendo ser suprida por uma gestão técnica capacitada de prontidão para adequar as atividades empresariais aos ordenamentos legislativos. É nesse quadro que se insere, também, a importância da advocacia além do contencioso. A prudência na gestão empresarial não está em evitar riscos, mas em assumir a sua real possibilidade e ter na base da organização as melhores maneiras de contorná-los.

Extensiva a diversas áreas da advocacia, a consultoria e o trabalho intelectual do advogado devem ser avaliados como órgão vital no cenário de um mundo globalizado, e a participação ativa de um departamento jurídico no âmbito da empresa é capaz de alinhá-la a preceitos éticos, legais, econômicos e organizacionais, como ocorre com a análise de contratos e o planejamento tributário - uma parceria leal entre economia e justiça, exercendo papel de notória relevância social em um cenário preocupante que revela um conceito darwinista para a sobrevivência da espécie (leia-se pessoa, física ou jurídica): vence o jogo aquele que melhor se adapta.



quinta-feira, 5 de junho de 2014

Em defesa da Lei da Palmada, contra o conservadorismo e as sangrentas políticas do "cidadão de bem"

Foi aprovado pelo Senado o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 58/2014, conhecido como Lei da Palmada, com o objetivo de punir agressões contra crianças e adolescentes. No aguardo da sanção presidencial, tempestivas são as colocações: a priori, o projeto altera a Lei nº. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), conferindo a estes o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou outros tratamentos que sejam considerados cruéis ou degradantes e, por castigo corporal, entende-se a ação disciplinadora ou punitiva que, por meio de força física, provoque dor ou lesão à criança ou adolescente; por tratamento cruel ou degradante, entende-se a conduta gravemente ameaçadora, ridicularizadora ou humilhante. Os pais ou responsáveis que utilizarem tais meios estarão sujeitos às medidas previstas no artigo 129 do Estatuto, dentre as quais se pode destacar o tratamento psicológico ou psiquiátrico, a advertência, a perda da guarda etc.

Sob o alicerce da massa conservadora - o que confiamos ser o estado de mais alta periculosidade trajando os preceitos de "boa cidadania"-, o projeto é abusivo e poderá repelir grave e injustamente os pais que gozam de autonomia para educarem seus filhos. A crítica é necessária: severamente, o Código Penal trata a ofensão à integridade física como crime de lesão corporal, previsto no artigo 129, e especificamente contra descendente no parágrafo 9º. Ocorre, contudo, que a cultura pode prevalecer sobre a lei, no sentido de se ter uma moral relativizada - não era crime, em termos fáticos, ou não era comumente levado ao judiciário um caso de um pai que utilizasse de força física para castigar seu filho, provocando dor ou terror psicológico para traumatizá-lo e, dessa forma, coibir um eventual ato de indisciplina. Era comum. Tão comum que foi possível observar, certa vez, uma vendedora ambulante que fez uso de uma colher quente para queimar a mão de sua filha, que não obedecia suas ordens; tão comum que o cenário midiático foi tomado pela atrocidade de pais que assassinam os filhos, no ápice de uma conduta primitiva, cruel e avassaladora que pode não ser mais do que um estágio avançado de sadismo crônico de quem pune física ou psicologicamente aquele cuja proporção não atinge suficiência para defender-se. E, sobre a autonomia na educação dos filhos, a Constituição Federal, em seu artigo 226, trata a família como base da sociedade e merecedora da proteção - e portanto intervenção - estatal, sendo assegurada a assistência para coibir a violência doméstica (§8º), prescindindo informar, ainda, os deveres de preservação das garantias fundamentais da criança e do adolescente previstos no artigo 5º da Constituição, no artigo 227 e no mencionado Estatuto. 

Nesta senda, o que se busca punir com o projeto de lei é a libertinagem educadora; não a autonomia, mas os resquícios de violência que estão distantes de serem métodos eficazes capazes de proporcionar a um indivíduo a compreensão do caráter de seus atos. 

Não é crível, ainda, pensar que se uma criança necessita de força física ou agressão moral grave para que seus atos sejam coibidos, esta criança pode sofrer de ausência de discernimento, o que pode ser, ainda, originário de uma predisposição ou de influência de fatores exógenos, mas que, de qualquer forma, prova a prescindibilidade das "palmadas" e seus indícios de crueldade e covardia. Fosse a imposição do terror e do caos a genialidade das soluções para o crime e Beccaria teria se calado; e não haveria reincidência, e o sistema carcerário seria o modelo ideal de recuperação e ressocialização do indivíduo. Mas nunca foi. E não será. 

A violência que pune a violência não é uma tática educativa, mas vingativa. O caráter retributivo de um ato é a receita mais lógica para ampliar os seus efeitos negativos. É certo que, contudo, a razoabilidade deve ser respeitada, mas não parece possível - e portanto não é nada temeroso - que seja punido severamente um responsável que não ultrapasse os seus métodos educacionais a ponto de ferir ou agredir seus filhos, ou que, para exemplificar, uma mãe perca a guarda por ter puxado a orelha da filha, muito embora o texto do projeto de lei seja claro ao proibir atos que causem dor à criança ou ao adolescente, mas nenhuma lei pode ser interpretada de maneira tão estrita que o tempo e o espaço não sejam a causa de sua relatividade, a tal ponto que preceitos éticos e morais determinam a diferença entre pais educadores e pais agressores, entre os preocupados e os sádicos, entre os virtuosos e os descontrolados, entre, futuramente, os criminosos e as vítimas.

Ainda assim, não parece ser a compreensão da intenção do projeto o ponto mais crítico do dilema. Em tempos de ameaça ditatorial, a recente volta da "Marcha pela família com Deus e pela 'liberdade'" escancarou a política do "cidadão de bem", que defende a instituição da família de maneira rígida e clara conforme mandamentos religiosos, e do mesmo dogma emana ainda o respeito aos pais, o que não pode ser confundido com anuência de libertinagem. É o cidadão de bem que defende a família, embora seja machista e exerça bravamente o seu patriarcado, mas entende ser um absurdo que a lei reconheça como união familiar dois companheiros do mesmo sexo. É o cidadão de bem que julga as leis penais tão brandas e favorece a ação dos justiceiros. É o cidadão de bem que se sente, agora, punido e limitado em agir, porque as crianças precisam de algumas "palmadas". E, para o cidadão de bem, as crianças precisam tanto de "palmadas" quanto os acusados de postes para serem amarrados e espancados em público, ou de um sistema carcerário desumano e impiedoso para trazer ao infrator o maior de todos os sofrimentos e puni-lo por uma vida inteira julgada por um dado momento. E todo o descontrole sádico e o desenfreado anseio de vingança traduzidos como senso de justiça aflorados surgem disfarçados no exercício da boa cidadania, na pregação de um ensino religioso verdadeiramente católico em um Estado laico, e no clamor público sangrento após o informe midiático que considera o crime como um fenômeno do criminoso - este, à margem da sociedade, como se não dela fosse, e como se não merecesse também a atenção social. 

Pelo bem das normas penais brasileiras e dos direitos humanos, que não são uma conspiração de defesa adotada por vilões juristas do cenário crítico que protagoniza o Direito, é dever reconhecer que enfrentamos o período batizado de Lei e Ordem pela política criminal. E de valoração dogmática com base em crenças irracionais, separação de indivíduos bons e maus em totalidade, convencimento de superioridade própria e marginalização alheia, a Alemanha tem uma imensa história para contar. Que estejamos, ainda, vivos, e por certo preparados, posto que vivemos em um período em que criamos o frio para distribuir agasalhos. Em suma: livrai-nos dos cidadãos de bem, amém.

*OBS: é possível acessar o projeto de lei no link http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=790543&filename=PL+7672/2010