segunda-feira, 16 de julho de 2012

Você sabe com quem (ou O QUE ESTÁ) falando?


     Consta o meu comentário na reportagem tendenciosa da Band (http://www.band.com.br/primeirojornal/conteudo.asp?ID=100000516523) onde pecaram os jornalistas em atropelar os fatos para dar ensejo a uma repercussão que por certo prescinde, a não ser para vir revestida de intenções negativas, senão vejamos:


          Meus caros colegas juristas e cidadãos,

         Urgentemente: cautela. Cautela, se não com a própria moral, ao menos com a lei. Costumeira frase de Nicolas Berryer ao iniciar uma defesa no tribunal, traz à lume um aprendizado deveras reluzente: “Trago à convenção a verdade e a minha cabeça; poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a primeira.”

      Refiro-me a uma questão inutilmente regada ao público, segundo a qual a desembargadora Yara Ramires e sua filha, advogada, Roberta Sanches, são acusadas de desacato por policiais militares. A repercussão de ordem moral é de exacerbada indiferença quando se trata de um procedimento qualquer, de mero ato legal, mormente diante de um cidadão cuja ocupação social não atinja o conhecimento da mídia. Mas algo muito diferente e demasiadamente cruel ocorre quando a suposta autoria delitiva é refém da sociedade, por meio de seus veículos de comunicação, (de)formadores de opiniões rasas e infundadas, o que não vem, desde logo, a atingir o mérito do presente caso, mas tão somente registrar a importância de se averiguar a verdade perante o caso concreto. Nesta senda, rege um notório e respeitável princípio em distintas órbitas de matéria jurídica, enfatizada a de ordem penal, denominado princípio da verdade real. Onde se vê tal princípio ser aplicado em uma transcrição tendenciosa dos fatos perante jornalistas, profissionais estes que, além de não estarem limitados a exercer de maneira respeitosa e digna estritamente a sua profissão, encontram-se incumbidos de atravessar a ciência jurídica e desafiar até a hermenêutica, como também a presunção constitucional de inocência, em legislar com seu vocabulário leigo? Passemos aos fatos e ao consequente embasamento legal.

      Tenha-se presente que, segundo apuração notória da mídia, a desembargadora Yara Ramires e sua filha, a advogada Roberta Sanches teriam sido abordadas por policiais para apresentação da carteira de habilitação, bem como, posteriormente, para submeter esta última ao teste do bafômetro, momento no qual, segundo apontam os jornalistas na internet, a advogada teria pedido para a desembargadora se apresentar perante os policiais, apresentado irritação e surpresa pela necessidade de realização do teste. Por conseguinte, vem sido tratado o fato, erroneamente – como era de se esperar de declarações de cunho jurídico oriundas de amadores, ou profissionais de outras áreas - como crime de desacato. Ocorre que o crime previsto no artigo 331 do Código Penal tem a sua adequação típica reconhecida pelo ato de ofender (desacatar) funcionário público no exercício da função ou em razão dela. A menos que se decline maliciosamente o conceito da honra subjetiva supostamente atingida no tocante à hipotética vítima policial, é de ver-se, nitidamente, que como outros crimes, a conduta exige o dolo específico, e não deve ser confundida como mero inconformismo diante de ato cuja legalidade é fragilizada pelos pressupostos constitucionais (o que será demonstrado a seguir), nem tampouco com mera crítica.

      Trata, pois, o presente caso, de claríssima atipicidade pelo que vem sido trazido ao público, cabível de se transcrever as linhas de Manzini, assim profetizadas: “...os funcionários públicos e os empregados encarregados de serviço público devem, realmente, ser respeitados, mas a lei não exige que sejam venerados como pessoas sagradas e intocáveis, de modo que se tenha como delituosa a simples reprovação de seus atos, expressa por modo não injurioso.” Se, por um momento caloroso ou de instabilidade emocional, a advogada teria pedido que a sua mãe se dirigisse ao policial de forma a se apresentar, é possível indagar, de maneira clara e objetiva, onde resta, enfim, o caráter ofensivo destas palavras. Resta, sim, incidência de atipicidade, tendo em vista, segundo Cezar Bitencourt, que “A crítica irrogada pelo indivíduo, sem o propósito de ofender, relativamente ao serviço prestado pela Administração Pública, não configura crime de desacato. É um direito do cidadão fiscalizar e criticar a qualidade do serviço público prestado de forma insatisfatória...”

      Vê-se, por aí, que a embriaguez, ainda que fosse o caso, tem sido reconhecida pela jurisprudência como incompatível com o crime de desacato. Mas é possível ser otimista e confiar em uma lídima justiça. Para tanto, o caso encontra-se nas mãos da Dra. Mariângela Teixeira Lopes Leão, do escritório Teixeira Leão Advogados, quem exibe nobre defesa onde pretende demonstrar que a Dra. Roberta não apresentou qualquer sinal de embriaguez e assim concluiu o exame, e que houve um excesso descontrolado na conduta dos policiais, o que pode sim consistir em um ilícito penal. É necessário aguardar as próximas notícias.

      Cautela, agora, é um suplício à nossa sociedade. O fato de que a advogada teria se recusado a permitir uma vistoria no carro por ausência de mandado, ou que teria se recusado a realizar o teste do bafômetro (veremos a seguir), não constitui qualquer ilícito, mas sim exercício pleno de legalidade daquela que, assim como a desembargadora vítima do caso, meramente conhece a lei. Infelizmente, grande parcela dos comentários injuriosos feitos às doutoras são culpados pela ignorância da lei, gerando a falsa impressão de que estas teriam tentado usufruir de um cargo para isentar-se de obrigação legal. Mas não há nada legal nas duas solicitações dos policiais, não da forma como foi feita. E não há nada legal, tampouco, em sua conduta.

      De qual ato ilícito estaríamos falando, afinal, que sujeitassem ambas as doutoras, ou também cidadãs, a um procedimento de inquérito policial? Onde está a tipicidade e onde está a prova concreta? Os casos de desacato são em maioria ocorridos com autoridades policiais. Testemunhos como tais, ou seja, de colegas de profissão, são absolutamente ineficientes e de credibilidade frágil se não corroborados com outros meios de prova. Se, de um lado a mídia encontra desrespeito ou – agora, pasmem, colegas criminalistas! - desacato, de outro, rege cristalina arbitrariedade e sensacionalismo. Deveras lamentável.

     Ao fim, roga-se a inconstitucionalidade do teste do bafômetro, sendo que, atinge a ciência de todos o fato de que ninguém será obrigado a produzir provas que sejam utilizadas contra si mesmo. Imunidade esta absolutamente coerente com um sistema jurídico segundo o qual o próprio réu não assume qualquer compromisso com a verdade, se fosse o caso.

      Caros juristas, caros cidadãos, repito: cautela! Estamos a tratar de um Estado Democrático de Direito, e não podemos, baseados em dúvidas, hipóteses ou fatos trazidos por terceiros sem que tenhamos examinado a concretude do ocorrido, manchar a dignidade de quem a profissão aponta zelar pela clamada justiça. E, por falar em justiça, temos que: de um lado, as palavras. De outro, a lei. De um lado, a opinião. De outro, a verdade. De um lado, a norma; junto, a ordem.

     Por uma justiça menos dramática, mais eficiente, cautelosa e simplesmente justa, e pela necessidade de caráter probatório, é a presente leitura.


2 comentários:

  1. Nossa...
    Excelente matéria!!! Você arrasou! Não tenho dúvidas do teu talento... Eu sinto a tua paixão pelo Direito ao ler teus artigos jurídicos. Voltando ao assunto em tela, este artigo deveria ser lido por todos. Juristas e cidadãos! Vamos divulgar...
    Beijos e parabéns pela admirável escrita! Será (e já está sendo) uma grande colaboradora desta ciência que é o Direito!
    Raíssa Marques

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