Terra do Nunca. Nunca pode nada. Imaginemos – mera utopia – que a sociedade, como problemática sistêmica inspiração basilar de toda norma jurídica, se afoga em uma crise de valores. E o aspecto fulcral ultrapassa a sociologia herdeira de Durkheim: vaga perdidamente na lábia da moça na fila do banco, do senhor que é assaltado, das vítimas cotidianas almejando segurança repressora que não são capazes de se contentar com as contemporâneas disposições legais do Código Penal, este, nada ímpio. O certo, entretanto, é que não estamos aqui para discutir as fontes da violência em demasia e de todos os problemas sociais, mas, a partir de quando podemos resumi-los em crise de valores – aqui suplico ao leitor que jamais se esqueça do termo empregado -, se a norma jurídica com vigência e eficácia resguarda potência imperativa para regular uma sociedade, talvez seja necessário, agora, olhar para o feto, e não para a barriga. Nesta senda é que se indaga: quais são as leis? Quem elabora as leis? E qual a origem de tudo? Se Galileu Galilei não foi capaz de responder a questão, eis o desafio: a esperança nasce e morre nas cadeiras universitárias. E isto, aqui, será provado por um raciocínio lógico, que nos é o bastante, para não dizer que não falei das leis.
Imaginemos que o mundo é uma
terra sem lei. Para a formação de juristas, é construída uma faculdade, cuja
posição geográfica desde logo se questiona, uma vez que concerne a um espaço
físico e cultural onde não regem as nossas leis – nem as sombras da moral e dos
bons costumes, lembremos sempre da crise de valores. Na faculdade temos uma
figura lendária fundadora, última instância mais conhecida como o ouro no fim
do arco-íris: muito se fala, ninguém pode chegar. Chamaremos tal instância de
reitoria. Na faculdade, as indicações bibliográficas para acompanhar as
matérias que integram o conteúdo programático semestral coincidentemente são
sempre de autoria de membros do próprio corpo docente. Na faculdade, dá-se pontos
a mais para quem fizer um trabalho sobre o livro lançado por um professor,
lembrando que não é obrigatório fazê-lo – mas soma nota. Na faculdade, como é
do conhecimento de todos, sabemos que o Direito está longe de ser uma ciência
exata, daí advém a doutrina, interpretação da lei à luz do raciocínio de
juristas. A doutrina sobre um dado tema pode dividi-lo entre duas concepções ou
até mais, mas aqui, na terra sem lei, a faculdade é a lei, o professor é a
doutrina. Na faculdade, o aluno que indaga o professor assina o atestado de
óbito, massacrado pelo poder da caneta. A caneta é uma varinha mágica do juízo
final que decide e guarda com notável imponência a porta do paraíso. Vida
eterna aos estudantes de caderno, vida curta aos leitores de livro. O poder da
caneta é o filtro da terra sem lei que vem doutrinando os alunos a sobreviver
em uma ditadura universitária. E Darwin previa isso quando apontou que se
perpetua a espécie que mais se adapta. A ciência, então, se mostra favorável à
perpetuação do mal, o mal que a sociedade da crise de valores não enfrenta por
pura preguiça. Se almejarmos uma vingança contra o governo, nossos olhos como
leitores assíduos serão o primeiro passo. Na terra sem lei não é diferente. Mas
a ditadura universitária legislou para isso: a terra sem lei não tem mesmo
leis, mas regimento interno. Ante a maestria do poder da caneta, tal regimento
prevê que não haverá vista de prova. O aluno, na condição de consumidor, que
paga pela prestação de serviços, autor do conteúdo intelectual da própria
prova, não tem direito algum de revisá-la e de ter a justificativa da sua nota.
Digamos – outra utopia – que o fato dê margem para arbitrariedades. O aluno,
para vestir toga, antes veste nariz de palhaço. (...) Mas sempre haverá um
revolucionário que levantou da cadeira, como bom estudante de Direito, irá
recorrer ao judiciário. E não pensemos que aqui estou para dizer que este aluno
estará em desvantagem, a culpa é de Mauro Capelletti, em “Acesso à Justiça”.
Imaginemos, pois, se o presidente do Tribunal de Justiça integrasse o corpo
docente da faculdade. Não sou eu – esquivo-me para não ser torturada -, é a
norma processual civil que impede o julgamento ante a suspeição do juízo, posto
que a justiça preza pela imparcialidade. Não nos parece injusto, ou estaríamos
a julgar o caráter de outrem não munidos ou legitimados a fazê-lo – e nem é da
minha natureza, mais de monge do que de escorpião (vide fábula do monge e do
escorpião), mas, pelo bem da verdade, parece irônico. A terra sem lei deixou a
desejar. O que não se sabe, ainda, é se culpamos a arbitrariedade, o poder da
caneta como fonte da formação de juristas, ou a plebe universitária massacrada
pelo reinado do fim do arco-íris, merecedora de todo mal, culpada e punida pela
inércia. Tudo por culpa de Einstein, para quem o que preocupa não é o barulho
dos maus, mas o silêncio dos bons. Minha culpa, não. Pretendo estar longe, ou
meu rumo será o exílio. Culpa sua, leitor. E da ditadura universitária.
Mas para não dizer que não falei
das leis, foi em 1764 que Beccaria demonstrou, em “Dos delitos e das penas”, o
quão atroz e insuficiente era a crueldade. E o direito, como ciência, é natural
excludente de cidadania. Quiçá poucos alunos – futuros exilados, lembremos
sempre de uma crise de valores -, saberão do que estou falando, pelo acesso ao
conhecimento, e outros, pelo acesso à informação. No final, tudo resulta no
mesmo: nem um nem outro levantará da cadeira. Mas a nós incumbe este papel,
para que não sejamos mais culpados pela moça da fila do banco e pelo senhor com
medo de ser assaltado, para quem a lei é fraca, o advogado corrupto, o direito
cruel. Reza a lenda que os universitários que ousaram enfrentar o sistema,
foram as últimas vítimas da inquisição. E o fracasso do sistema inquisitivo
impera na doutrina dos penalistas clássicos, tal que o sistema processual penal
só não caminha mais velozmente rumo a falência porque é diferente da terra sem
lei: a faculdade é juiz, autor e réu. Testemunha também, o que preciso for. E
tal como ocorre no processo criminal, o aluno é a vítima. E o destino é o
cárcere, o meu cárcere e o cárcere alheio. Seremos encarcerados a limitar o
raciocínio, mas ainda não encarcerados a atenuar o pensamento. Vivemos mesmo em
uma crise de valores, mas o que falarmos de valores se nos tornamos adaptáveis?
Darwinistas de plantão, de seleção em seleção natural surgiu o primeiro ideal
nazista. E para sofrer as sequelas do campo de concentração não bastava
levantar da cadeira, mas existir. Na faculdade, Descartes diria: “Penso, logo
resisto”.
O que faço é mera reflexão, mas
se eu sumir amanhã, não culpemos o destino. Capitalistas escravizados dizem que
eu serei só mais um herói morto. O que não mais sei é se viver na crise de
valores é mesmo preferível ou suportável, ainda que me torne um desafio diário,
vítima do sistema inquisitivo, da crítica de Beccaria e dos campos de
concentração. Enquanto isso “Mãos ao alto!” – gritou um homem, um demônio
engravatado. Ele estava armado com o poder da caneta. E eu, reincidente,
condenada. Sorte a minha o Brasil não admitir prisão perpétua – por vezes me
esqueço que aqui é terra sem lei.
Isso tudo é só uma faculdade.
Temos um mundo afora sem sombras malignas, liberdade do Mito da Caverna, de
Platão. E a escolha é livre: lutar ou morrer. Adaptar-se é só mais uma marcha
lenta da morte. Da morte moral, porque vivemos em uma crise de valores.
E resumo o pensar na canção de
Chico Buarque, prevendo o meu exílio, anarquista estudantil nata. Ah, terra sem
lei: “apesar de você, amanhã há de ser outro dia...”
OBS:
Quando
chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
(composição
de Chico Buarque, canção Apesar de Você)
Nossa!
ResponderExcluirPosso resumir?
Você é foda meninaaa!
Orgulho de ser sua amiga, o texto esta muito sabio, brilhante!
Temos uns aos outros apenas!
Beijos LARA